Introdução
Recentemente, o Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região proferiu uma decisão polêmica (IRDR 0000613-07.2022.5.08.0000) sobre o uso da geolocalização como prova em processos trabalhistas.
Neste artigo, exploramos o contexto, as considerações e o impacto dessa decisão. Apontamos, também, um contraponto, as desconformidades, fundamentado principalmente nas razões contidas no voto divergente, da relatoria originária, oferecendo uma visão mais ampla do caso.
Contexto do Julgamento
A questão fulcral do julgamento foi a admissibilidade do acesso a dados de geolocalização no celular pessoal do empregado, sem a sua autorização, para uso como prova digital em processo trabalhista. O tribunal buscou pacificar o entendimento sobre essa questão controversa, que tem sido recorrente em diversos processos , que levanta preocupações sobre a isonomia e a segurança jurídica e que ensejou a admissibilidade do IRDR por unanimidade. O TRT da 8ª Região ponderou sobre a violação dos direitos fundamentais dos trabalhadores, incluindo questões de privacidade e sigilo de dados. A decisão reconheceu a necessidade de equilibrar o interesse público à prova com os direitos fundamentais dos trabalhadores à privacidade. Nesse diapasão, o tribunal decidiu, por maioria, que o acesso a dados telemáticos de geolocalização sem a autorização do empregado é inadmissível, por violar direitos e garantias fundamentais. Foi, portanto, fixada a seguinte tese (precedente qualificado): “Não pode haver a quebra da geolocalização do celular do empregado sem a sua autorização, a fim de fazer prova em processo trabalhista, por violação aos direitos e garantias fundamentais do trabalhador.”
O voto divergente, contudo, destaca que a proteção dos dados pessoais não impede sua coleta por ordem judicial, conforme a LGPD. Argumenta-se que a requisição de provas digitais é um exercício legítimo de direito, enfatizando a confiabilidade dessas informações. A divergência ressalta, ainda, que a geolocalização já é uma prática no ambiente de trabalho e que os dados obtidos beneficiam a busca pela verdade real, estando em linha com o avanço tecnológico na Justiça do Trabalho.
Este contraponto do voto divergente realça a complexidade de equilibrar a inovação tecnológica com a proteção da privacidade no ambiente trabalhista e a decisão evidencia a necessidade de uma compreensão aprofundada das normativas que envolvem as provas digitais.
DESCONFORMIDADES
Apesar do louvável escopo do regional em buscar isonomia e segurança jurídica na fixação da referida tese, é mister trazer à baila desconformidades normativas e práticas a viabilizar eventual distinguishing ou quiçá, até, um overruling.
Em termos práticos, a Justiça do Trabalho já possui oito Regionais com o Sistema para tratamento de provas digitais, o Veritas, desenvolvido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (SC). Essa ferramenta de geolocalização foi criada pela Seção de Provas Digitais, vinculada à Secretaria de Execução TRT-12, no ambiente do Laboratório de Inovação, Inteligência e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (Liods-TRT12).
Os dados de geolocalização são decodificados pelo Veritas e podem ser obtidos a partir de duas formas: pelas antenas das operadoras de telefonia ou pelo Google. No caso da telefonia, o magistrado pode conseguir esses dados diretamente, oficiando as operadoras através dos portais judiciais. No caso do Google, os dados podem ser enviados pelas próprias partes, por meio do aplicativo Google Takeout.
Essas informações podem ser utilizadas como prova digital de jornada, vínculo de emprego, assédio moral ou sexual, vínculo de emprego doméstico, dentre outros.
A tecnologia do Veritas está alinhada à Plataforma Digital do Poder Judiciário, do CNJ, a PDPJ, o que está possibilitando ser utilizada por todos tribunais trabalhistas.
Em termos normativos, de legalidade e licitude da Prova Digital, cediço que a LGPD não impede a coleta de dados pessoais por ordem judicial. Há norma positivada autorizando o acesso a dados pessoais tanto para cumprimento de obrigação legal como para o exercício regular de direitos em processo judicial.
Outrossim, não há que se confundir acesso a dados pessoais estáticos com interceptação telefônica ou telemática.
Nesse sentido parte do voto divergente :
“ Quanto à legalidade e licitude de referida prova, observo que a Lei Geral de
Proteção de Dados ( LGPD – Lei nº 13.709/2018), dispondo sobre o tratamento de
dados pessoais, inclusive nos meios digitais, objetivou, precipuamente, “proteger os
direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da
personalidade da pessoa natural.” (art. 1º)
E, nessa linha, incorporou ao ordenamento jurídico normas para evitar
vazamentos e proteger dados pessoais.
Essa proteção aos dados pessoais não constitui, todavia, óbice à coleta desses dados
por meio de ordem judicial, assinalando-se que o art. 7º da LGPD autorizou o
tratamento de dados pessoais nas hipóteses de “cumprimento de obrigação legal
ou regulatória pelo controlador” (in. II) e “para o exercício regular de direitos em
processo judicial” (inc. VI).
No caso, o requerimento formulado por uma das partes no sentido de produção de
determinada prova, inclusive digital, revela o exercício regular de um direito,
notadamente considerando a maior solidez e alto grau de confiabilidade das
informações que dela possam advir.
Daí porque não se reconhece ofensa ao art. 22 da Lei nº 12.965/14.
Ainda, a vedação de que trata o art. 2º da Lei n. 9.296/1996 não se aplica a
procedimento que visa a obter dados pessoais estáticos armazenados em seus
servidores e sistemas informatizados de um provedor de serviços de internet,
mas à interceptação de comunicações telefônicas, medida que não será alcançada
pelo comando judicial objeto desta ação de segurança.
Não se reconhece, ainda, que a determinação da produção da prova digital, em
preferência à prova testemunhal, possa significar ofensa ao princípio da oralidade e
da imediatidade.
Pelo sistema processual brasileiro, inclusive o trabalhista, não há hierarquia entre
os tipos de prova, sendo permitido o uso de todos os meios legais, bem como os
moralmente legítimos (art. 369, CPC), cabendo ao juiz, inclusive de ofício,
determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito (art. 370, CPC).
Assim, se o novo meio probatório, digital, fornece para o fato que se quer
comprovar – as folhas de ponto retratam o verdadeiro horário de trabalho – dados
mais consistentes e confiáveis do que a prova testemunhal, não há porque sua
produção ser relegada a um segundo momento processual, devendo, de outro modo,
preceder à prova oral, ainda que mais tradicional, com vista à busca mais efetiva da
verdade real, e, portanto, à maior segurança da prestação jurisdicional, bem assim
atendendo ao princípio da rápida duração do processo.
Ressalto, não se tratará de prova obtida por meio ilícito, pois objetiva a
confirmação dos fatos afirmados pelo próprio autor, de que os cartões de ponto não
retratam a verdadeira jornada. Ademais, a prova digital requerida pelo réu é
pertinente e mais eficaz do que a prova testemunhal na busca da verdade real,
motivo pelo qual foi deferida.
Há atentar, ainda, que mecanismos de geolocalização são repetidamente
ativados nos aparelhos celulares, pelo acesso a inúmeros aplicativos, ou mesmo
por consultas a sítios de compras, revelando, assim, que o sigilo de dados e
informações na rede mundial de computadores não é absoluto.
Repita-se que a Justiça do Trabalho, sempre atenta aos avanços tecnológicos, que
se mostraram mais evidentes e relevantes com o isolamento social imposto pela
pandemia do Coronavírus, tem incentivado a produção de prova por meios digitais,
notadamente em face da maior segurança que oferece na busca da verdade real em
relação a outros meios de prova.
Assim que cursos vêm sendo oferecidos a Magistrados e servidores a fim de
capacitá-los à produção, ao exame e ao aproveitamento dessas provas.
Recentemente, houve a expedição do Ato Conjunto TST/CSJT/CGJT nº 31, de 4 de
agosto, que dispõe sobre “diretrizes para a emissão de ordens judiciais dirigidas à
Microsoft Corporation por parte de magistrados da Justiça do Trabalho,
envolvendo a solicitação de informações de dados armazenados.”
Ainda, a respeito, a Ministra Maria Cristina Peduzzi, ex-presidente do C. TST, fez
o seguinte pronunciamento:
Vivemos uma transformação tecnológica nunca vista, cuja velocidade das
atualizações tem impacto nas nossas vidas, incluindo as relações de trabalho”(…)”a
revolução 4.0 chegou, e a Justiça do Trabalho precisa estar atenta a esse momento”.
Observo, ainda, que o sistema de geolocalização há muito já se faz presente nas
relações trabalhistas, por equipamentos de trabalho, sendo exemplo rastreadores e
tablets, que permitem ao empregador precisar o local que se encontra seu
empregado no curso de seu expediente.
E o que busca a prova cuja produção foi determinada pelo Magistrado de primeiro
grau nada mais é senão a localização do impetrante nos horários que afirma estar
no ambiente de trabalho após o horário consignado nos cartões de ponto, ou seja, a
confirmação do fato que ele próprio alega. E, nesse aspecto, à vista do princípio da
boa-fé processual, a prova parece aproveitar mais ao próprio autor do que ao seu
empregador.
Ademais, a medida liminar deferida nesta ação de segurança logrou resguardar os
direitos à privacidade assegurados pelos arts. 5º, X e XII da CF e arts. 7º, I e II, e
10 da Lei nº 12.965/2014 ( Marco Civil da Internet), ao conferir sigilo aos dados
coletados, reservando sua análise às partes envolvidas no processo.
Enfim, não se reconhece na decisão impugnada qualquer violação às normas legais
de proteção de dados, tampouco qualquer abusividade, apresentando-se
robustamente fundamentada”.
Considerando que o juiz possui ampla liberdade na direção do processo e o dever
de requisitar de quem detém a guarda de evidências para a formação do conjunto
probatório em processos judiciais de qualquer natureza, competindo-lhe, assim,
determinar a realização de quaisquer diligências e produzir todas as provas
necessárias ao esclarecimento dos fatos e à rápida solução dos litígios, nos termos
do art. 765 da CLT c/c arts. 139, II, e 370 do CPC e 22 da Lei nº 12.965/2014 (
Marco Civil da Internet – MCI), bem como adotar as providências necessárias à
garantia do sigilo das informações recebidas, a teor do que prescreve o art. 23 do
MCI.
Assim, acompanho o Relator, pois entendo que o Magistrado pode se utilizar da
prova digital, devendo tomar a cautela de atribuir sigilo aos dados coletados,
garantindo assim a preservação do direito à intimidade e à vida privada da parte e
que limite a prova a períodos certos e determinados, de forma a minimizar a
invasão aos dados telemáticos da parte.
De outro lado, a prova é destinada a dados de geolocalização, sem adentrar ao
conteúdo de conversas e imagens.” (grifo nosso)”
Tem-se, pois, que o uso da prova digital deve ser feito com cautela para garantir a privacidade e a intimidade das partes e para tal fim existem as medidas de sigilo (visibilidades restritas) e limitação temporal do objeto da prova para preservar a privacidade, restringindo-se aos fatos controvertidos.
Destarte, longe de esgotar o tema, pensamos que estes fundamentos refletem uma compreensão pormenorizada e atualizada das implicações legais, éticas e práticas da utilização de provas digitais, particularmente a geolocalização, no âmbito do Processo do Trabalho para futura ponderação.
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A decisão do TRT da 8ª Região, com seu voto divergente, mostra o dinamismo da Prova Digital Trabalhista, reforçando a importância da capacitação contínua, como oferecida pelo curso “PROVAS DIGITAIS E GEOLOCALIZAÇÃO” da PM Cursos, para profissionais que buscam dominar com maestria este cenário evolutivo.
PATRÍCIA MEDEIROS[1]
I
Juíza Titular de Vara do Trabalho da Capital do Rio de Janeiro, Presidente da Associação dos Juízes do Trabalho – AJUTRA ; Formadora de Juízes pelo TST/ENAMAT/CSJT e pela Escola de Magistratura Nacional Francesa – École Nationale de la Magistrature –ENM; Doutoranda em Ciências Jurídicas Filosóficas (Teoria da Decisão) – Universidade de Coimbra, Portugal; Mestre em Ciências Jurídicas Processuais – Universidade Clássica de Lisboa; Professora e Conteudista – Escola de Magistratura TRT1; Idealizadora do Projeto “As Processualistas Trabalhistas”; Membro Diretor do Grupo de Estudos Tecnologia e Inovação na Justiça do Trabalho – TRT1;Membro do Conselho Pedagógico da Escola Judicial do TRT1; Juíza Vice Coordenadora e Ordenadora de Despesas – Escola Judicial – TRT1; Vice Coordenadora do Subcomitê do CNJ no TRT1 de Inovação no Poder Judiciário. Membro Honorário do IAB. Membro Consultor da ABA Nacional.
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